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terça-feira, 18 de maio de 2010

Há um Neandertal dentro de nós

17/05/2010 por Paulo Alexandre

Peter Moon (publicado na Revista Época, Edição 655 – 10 de maio de 2010)

Nossos primos mais próximos não se extinguiram por completo.Humanos e neandertais acasalaram. Os europeus e asiáticos são seus descendentes.

Uma das mais importantes questões da antropologia foi respondida. Desde o século XIX se discute a identidade do homem de Neandertal. Quem era esse nosso primo em primeiro grau na família evolutiva humana? Os neandertais, ou Homo neandertha-lensis, eram maiores e mais fortes que os Homo sapiens, os homens modernos que evoluíram na África há 200 mil anos. Já os neandertais habitaram a Europa e o Oriente Médio por 300 mil anos. Eles conheciam o fogo, caçavam mamutes com lanças sofisticadas e se protegiam do frio com peles dos animais abatidos. Os neandertais eram inteligentes. Seu cérebro era maior que o nosso. Era uma espécie magnificamente adaptada à sobrevivência nas duríssimas condições da Europa glacial. Mesmo assim, desapareceram. Após ceder progressivamente um continente inteiro aos invasores de nossa espécie, há 22 mil anos os últimos bandos remanescentes refugiaram-se nas cavernas do rochedo de Gibraltar, no extremo sul da Espanha. Era um beco sem saída. Do alto do rochedo avista-se a África, do outro lado do Estreito de Gibraltar. Só 13 quilômetros de mar separavam os neandertais da sobrevivência. Mas essa não era uma opção. Eles nunca inventaram barcos. A espécie se extinguiu.
Mas era só o primeiro volume. O segundo volume da história dos neandertais começou a ser escrito na semana passada, com a divulgação do mapeamento do genoma da espécie na revista Science. “Os neandertais eram tão parecidos conosco que, se um deles entrar aqui barbeado e vestido, ninguém notará a diferença”, disse o geneticista sueco Svante Pààbo, de 55 anos, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha. Ao comparar o DNA neandertal com o nosso, veio a surpresa. Os neandertais não desapareceram totalmente. Uma pequena fração de seu material hereditário continua viva em nós, incorporada no DNA de cada célula dos bilhões de humanos com raízes na Europa e na Ásia. Todos têm genes neandertais. Seus antepassados comuns pertenceram à primeira leva humana que saiu da África. Eles acasalaram com os neandertais. A miscigenação, diz Pàãbo, deu-se no Oriente Médio, entre 80 mil e 50 mil anos atrás. A contribuição genética neandertal não é universal. Os descendentes dos humanos que ficaram na África não se misturaram. Seu DNA não tem genes neandertais. Entender as causas que teriam levado os neandertais à extinção foi motivo de um debate acalorado que começou em 1856, quando seus primeiros fósseis foram retirados de uma caverna no Vale do Rio Neander, na Alemanha. Na época, o planeta estava partilhado pelas potências coloniais européias. Seus monarcas creditavam esse domínio à superioridade biológica, moral e tecnológica da civilização branca, cristã e européia. Identificar os neandertais como os ancestrais diretos dos europeus foi um passo imediato. Era a prova cabal de que o homem surgiu na Europa e, por isso, era superior aos asiáticos, aborígines e africanos. Não contavam com Charles Darwin.
Em 1871, ao afirmar que chimpanzés e humanos evoluíram de um ancestral comum, Darwin apontou a África como o provável berço da humanidade. De uma hora para outra, os neandertais foram destituídos de sua primazia e rebaixados a primitivos “homens das cavernas”. A queda social dos neandertais não moveu o foco do debate sobre as causas de sua extinção. Arqueólogos, antropólogos e paleontólogos discutiram por 150 anos.
A maioria afirmava que os neandertais, supostamente dotados de uma capacidade cognitiva inferior à nossa, nunca tiveram condição intelectual para concorrer com o Homo sapiens pelo domínio dos territórios de caça. Outra grande facção creditava o fim dos neandertais na conta de nossa espécie, naquele que teria sido o primeiro genocídio. Havia ainda uma minoria defensora de uma hipótese inusitada. Os neandertais não teriam desaparecido por completo. Teriam acasalado com indivíduos de nossa espécie. Se namoros (ou estupros) tivessem ocorrido, e a prole resultante mantivesse a fertilidade (ao contrário de burros e mulas, filhotes estéreis da cruza de cavalos e jumentas), abrir-se-ia a possibilidade de neandertais terem irrigado seus genes no DNA humano.
O DNA é uma molécula complexa e frágil. Poucas horas após a morte de um indivíduo, o DNA começa a fragmentar. Por isso, os geneticistas achavam impossível extraí-lo de cadáveres. Em 1985, o jovem Svante Pàãbo provou o contrário, ao extrair genes de múmias egípcias. Nos anos seguintes, ele foi pioneiro na extração de DNA de animais extintos (leia no quadro). Em 1997, voltou-se aos neandertais. Mapeou o DNA de suas mitocôndrias (órgãos celulares com genes transmitidos só da mãe) sem achar nada humano. Decretou: “Nunca houve acasalamento entre as espécies”.
De lá para cá, o avanço da tecnologia genética fez o que era impossível tornar-se corriqueiro. “A precisão atual dos equipamentos era impensável há 15 anos.” Ainda assim, mapear o DNA neandertal demorou três anos. A equipe extraiu genes de três ossos de fêmeas de 38 mil anos, de uma caverna na Croácia. Seus fragmentos genéticos foram remontados num só genoma. Quando comparado ao DNA do chimpanzé, o DNA neandertal exibiu semelhança de 98,5%, a mesma que guardamos com os chimpanzés. Confrontando o DNA humano com o neandertal, a diferença caiu para 0,5%. É mínima. A mesma que existe entre mim, você e qualquer ser humano. Seriam os neandertais humanos? “Tomamos cuidado para não usar nenhuma definição de espécie,” diz Pãábo. “Os neandertais eram tão parecidos conosco que nenhuma definição serve.”
O grande feito de Páábo e sua equipe não foi mapear o DNA neandertal. Foi compará-lo ao nosso. Ao fazê-lo, detectou aquele 0,5% que nos é exclusivo. Lá residem os enigmas de nossa espécie. “Detectamos várias regiões e identificamos alguns genes. Há 78 mutações”, diz o americano Richard Green, co-autor do estudo. São só 78 mutações num universo de 20 mil genes. Três delas, já se sabe, estão relacionadas à pigmentação da pele. Outras quatro são ruins. Estão associadas a doenças como o diabetes do tipo 2, o autismo, a síndrome de Down e a esquizofrenia. A comparação com os neandertais poderá nos ajudar a detectar quais mutações foram as responsáveis pelos aspectos mais básicos que definem o ser humano: nossa consciência e o dom da fala.

Peter MoonUma das mais importantes questões da antropologia foi respondida. Desde o século XIX se discute a identidade do homem de Neandertal. Quem era esse nosso primo em primeiro grau na família evolutiva humana? Os neandertais, ou Homo neandertha-lensis, eram maiores e mais fortes que os Homo sapiens, os homens modernos que evoluíram na África há 200 mil anos. Já os neandertais habitaram a Europa e o Oriente Médio por 300 mil anos. Eles conheciam o fogo, caçavam mamutes com lanças sofisticadas e se protegiam do frio com peles dos animais abatidos. Os neandertais eram inteligentes. Seu cérebro era maior que o nosso. Era uma espécie magnificamente adaptada à sobrevivência nas duríssimas condições da Europa glacial. Mesmo assim, desapareceram. Após ceder progressivamente um continente inteiro aos invasores de nossa espécie, há 22 mil anos os últimos bandos remanescentes refugiaram-se nas cavernas do rochedo de Gibraltar, no extremo sul da Espanha. Era um beco sem saída. Do alto do rochedo avista-se a África, do outro lado do Estreito de Gibraltar. Só 13 quilômetros de mar separavam os neandertais da sobrevivência. Mas essa não era uma opção. Eles nunca inventaram barcos. A espécie se extinguiu.Mas era só o primeiro volume. O segundo volume da história dos neandertais começou a ser escrito na semana passada, com a divulgação do mapeamento do genoma da espécie na revista Science. “Os neandertais eram tão parecidos conosco que, se um deles entrar aqui barbeado e vestido, ninguém notará a diferença”, disse o geneticista sueco Svante Pààbo, de 55 anos, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha. Ao comparar o DNA neandertal com o nosso, veio a surpresa. Os neandertais não desapareceram totalmente. Uma pequena fração de seu material hereditário continua viva em nós, incorporada no DNA de cada célula dos bilhões de humanos com raízes na Europa e na Ásia. Todos têm genes neandertais. Seus antepassados comuns pertenceram à primeira leva humana que saiu da África. Eles acasalaram com os neandertais. A miscigenação, diz Pàãbo, deu-se no Oriente Médio, entre 80 mil e 50 mil anos atrás.

A contribuição genética neandertal não é universal. Os descendentes dos humanos que ficaram na África não se misturaram. Seu DNA não tem genes neandertais. Entender as causas que teriam levado os neandertais à extinção foi motivo de um debate acalorado que começou em 1856, quando seus primeiros fósseis foram retirados de uma caverna no Vale do Rio Neander, na Alemanha. Na época, o planeta estava partilhado pelas potências coloniais européias. Seus monarcas creditavam esse domínio à superioridade biológica, moral e tecnológica da civilização branca, cristã e européia. Identificar os neandertais como os ancestrais diretos dos europeus foi um passo imediato. Era a prova cabal de que o homem surgiu na Europa e, por isso, era superior aos asiáticos, aborígines e africanos. Não contavam com Charles Darwin.Em 1871, ao afirmar que chimpanzés e humanos evoluíram de um ancestral comum, Darwin apontou a África como o provável berço da humanidade. De uma hora para outra, os neandertais foram destituídos de sua primazia e rebaixados a primitivos “homens das cavernas”. A queda social dos neandertais não moveu o foco do debate sobre as causas de sua extinção. Arqueólogos, antropólogos e paleontólogos discutiram por 150 anos.A maioria afirmava que os neandertais, supostamente dotados de uma capacidade cognitiva inferior à nossa, nunca tiveram condição intelectual para concorrer com o Homo sapiens pelo domínio dos territórios de caça. Outra grande facção creditava o fim dos neandertais na conta de nossa espécie, naquele que teria sido o primeiro genocídio. Havia ainda uma minoria defensora de uma hipótese inusitada. Os neandertais não teriam desaparecido por completo. Teriam acasalado com indivíduos de nossa espécie. Se namoros (ou estupros) tivessem ocorrido, e a prole resultante mantivesse a fertilidade (ao contrário de burros e mulas, filhotes estéreis da cruza de cavalos e jumentas), abrir-se-ia a possibilidade de neandertais terem irrigado seus genes no DNA humano.O DNA é uma molécula complexa e frágil. Poucas horas após a morte de um indivíduo, o DNA começa a fragmentar. Por isso, os geneticistas achavam impossível extraí-lo de cadáveres. Em 1985, o jovem Svante Pàãbo provou o contrário, ao extrair genes de múmias egípcias. Nos anos seguintes, ele foi pioneiro na extração de DNA de animais extintos (leia no quadro). Em 1997, voltou-se aos neandertais. Mapeou o DNA de suas mitocôndrias (órgãos celulares com genes transmitidos só da mãe) sem achar nada humano. Decretou: “Nunca houve acasalamento entre as espécies”.De lá para cá, o avanço da tecnologia genética fez o que era impossível tornar-se corriqueiro. “A precisão atual dos equipamentos era impensável há 15 anos.” Ainda assim, mapear o DNA neandertal demorou três anos. A equipe extraiu genes de três ossos de fêmeas de 38 mil anos, de uma caverna na Croácia. Seus fragmentos genéticos foram remontados num só genoma. Quando comparado ao DNA do chimpanzé, o DNA neandertal exibiu semelhança de 98,5%, a mesma que guardamos com os chimpanzés. Confrontando o DNA humano com o neandertal, a diferença caiu para 0,5%. É mínima. A mesma que existe entre mim, você e qualquer ser humano. Seriam os neandertais humanos? “Tomamos cuidado para não usar nenhuma definição de espécie,” diz Pãábo. “Os neandertais eram tão parecidos conosco que nenhuma definição serve.”O grande feito de Páábo e sua equipe não foi mapear o DNA neandertal. Foi compará-lo ao nosso. Ao fazê-lo, detectou aquele 0,5% que nos é exclusivo. Lá residem os enigmas de nossa espécie. “Detectamos várias regiões e identificamos alguns genes. Há 78 mutações”, diz o americano Richard Green, co-autor do estudo. São só 78 mutações num universo de 20 mil genes. Três delas, já se sabe, estão relacionadas à pigmentação da pele. Outras quatro são ruins. Estão associadas a doenças como o diabetes do tipo 2, o autismo, a síndrome de Down e a esquizofrenia. A comparação com os neandertais poderá nos ajudar a detectar quais mutações foram as responsáveis pelos aspectos mais básicos que definem o ser humano: nossa consciência e o dom da fala.

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